Somos insetos kafkianos: A Metamorfose e o que ela tem para nos dizer

Uma interpretação bem pessoal do clássico kafkiano, sem baratas e sem apego ao surreal. Kafka usou de enredo fantástico para tratar de algo muito presente na vida do cidadão comum

O livro A Metamorfose, de Franz Kafka, é uma metáfora sobre a alienação pelo trabalho, as relações tóxicas e os jogos de interesses familiares. A escolha do autor em contar essa história sob um ponto de vista surreal – como ocorre com todas as suas outras obras – só reforça o caráter absurdo de alguns comportamentos que a vida moderna tem banalizado.

Meu primeiro contato com a obra aconteceu por causa de uma obsessão que eu tinha por filmes de ficção científica. Aquilo que poderia ter se tornado ferramenta de alienação, com a orientação correta, serviu para direcionar o meu caminho acadêmico.

ENTRE A MOSCA E A METAMORFOSE

Minha mãe comprou nosso primeiro e único aparelho de videocassete em 1995. Não havia cinemas na minha cidade natal. As locadoras de filmes – aquelas que nos obrigavam a rebobinar a fita antes de devolver – eram muito limitadas. Numa época pré-internet, a principal fonte de informação era a TV. Havia as bancas de jornal, mas o dinheiro era curto e eu dava preferências para as minhas revistas em quadrinhos.

As principais emissoras televisivas disputavam violentamente nossa atenção. A rede Globo com sua Tela Quente – ainda existente no momento em que escrevo esse texto – e o SBT com a sua Sessão das Dez. Nós, telespectadores sem outras opções, ficávamos na expectativa para saber quando seria lançado aquele tão esperado sucesso de bilheteria. Um desses filmes que eu aguardava havia tempos era “A Mosca” (The Fly), dirigido por David Cronenberg e estrelado por Jeff Goldblum, Greena Davis e John Getz.

O filme havia sido lançado nos cinemas americanos em 1986 e estreou na TV aberta brasileira em 26 de janeiro de 1989, na Tela Quente. Eu não tive a oportunidade de assistir. Era muito jovem para isso, tinha apenas nove anos de idade. Além de não termos aparelho de TV, à época havia uma classificação indicativa etária, resquício da Ditadura Militar que mal havia acabado.

Numa das muitas repetições nos anos posteriores, por volta de 1994 – um ano antes da minha mãe comprar o já citado videocassete –, eu estava me programando para a exibição que seria feita num fim de semana, não falava de outro assunto. O jornalista e professor Roque Luiz Farias, um amigo da família, ficou curioso com tanta empolgação. Perguntou-me qual era o enredo do filme. Quando respondi, ele comentou: “lembra o livro “A Metamorfose” de Franz Kafka. Como assim? O filme havia sido inspirado no livro? Por que ninguém me contou isso antes? Onde eu poderia encontrar esse livro?

E EIS QUE O LIVRO ME CHEGA ÀS MÃOS

Estava mais fácil do que eu imaginava. O professor fez questão de emprestar-me. O problema é que, na época, eu não tive maturidade para entender a metáfora explícita naquelas páginas.

Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.” Assim começava a narrativa. Ao contrário do que o professor me havia comentado, em nenhuma parte esse inseto era definido, o termo “barata” não aparece. Uma das melhores descrições contidas no livro diz que o inseto possuía “dorso duro e inúmeras patas”.

Franz Kafka era um escritor austro-húngaro, nascido em 1883, na cidade de Praga. Autor de obras que quase sempre retratam a desesperança, o pessimismo, crise existencial e impotência. Entre seus trabalhos mais conhecidos estão: A Metamorfose, O Processo e O castelo. Também ficou famosa uma carta que ele escreveu para seu próprio pai, mas nunca enviou (Brief an den Vater). Esses conflitos parecem se refletir em sua obra, incluindo A Metamorfose.

O ENREDO DE A METAMORFOSE

Gregor Samsa é um caixeiro viajante. Ele não é feliz no trabalho, mas se sacrifica para saudar uma dívida familiar e manter financeiramente seu pai, sua mãe e sua irmã mais nova. Já nas primeiras linhas é possível perceber a mistura de tragédia e sátira adotada pelo escritor. É o tipo de obra que Northrop Frye classificaria como narrativa irônica, aquele estilo em que não há predominância do humor. Ao contrário, a obra é sombria e demonstra claramente que os problemas estão para muito além daquilo que o protagonista é capaz de resolver.

Nosso herói – se é que posso chamá-lo assim – só consegue se livrar das condições degradantes do trabalho quando é acometido por uma enfermidade – sua metamorfose. O apelo psicológico do personagem é um dos pontos fortes da trama metafórica. O cenário se limita, quase que exclusivamente, ao quarto de Gregor, mas sem descuidar da associação com a vida em sociedade. Como se a casa fosse um microcosmo representativo do espaço social.

A obra foi escrita em 1912, num espaço de 20 dias. Mas só foi publicada em 1915. Aqui é preciso lembrar que a Primeira Guerra Mundial teve início em 1914. É de se imaginar a tensão social existente enquanto Kafka esboçava essas ideias.

Logo após acordar e se perceber transformado num inseto, a primeira preocupação de Gregor Samsa é que ele tem que correr para não chegar atrasado ao trabalho. Ele tinha muito medo de perder o emprego, como se a metamorfose em si fosse algo menor, tão banal quanto um resfriado seria hoje para um de nós. E essa é a primeira pista para entender do que Kafka estava falando.

Após perceber que seu funcionário está atrasado, o chefe de Gregor vai até sua casa para saber o que aconteceu. Ele, o chefe, e a família Samsa resolvem abrir a porta do quarto para entender o que está acontecendo. Todos ficam chocados ao dar de cara com o inseto gigante. Gregor tenta se aproximar do chefe para explicar sua situação, no entanto, sua voz não sai. Ele só consegue emitir ruídos ininteligíveis. Esse é o início do processo de degradação que Gregor sofrerá até que a metamorfose esteja completa. Afinal, a transformação da qual trata o livro é aquela que converte um cidadão saudável e produtivo numa criatura à margem da sociedade, alguém que deve ser escondido, renegado, vilipendiado.

SOBRE O ESTILO DE A METAMORFOSE

A Metamorfose foi escrita originalmente em alemão, mas o texto de Kafka – ao menos em suas traduções – não possui adjetivos desnecessários ou floreios de qualquer tipo. Sua prosa é cortante.

Logo após o incidente com o chefe, a família se reúne para decidir o que será feito. A irmã de Gregor fica responsável pela limpeza do seu quarto e por alimentá-lo. A princípio ela o faz com muito gosto, mas aos poucos aquilo vai se tornando um fardo. Ela nem se esforça para esconder o asco que sente pelo irmão. Aquele mesmo irmão que mantinha financeiramente toda a família. Agora ele está impossibilitado de produzir, não tem mais os frutos do seu trabalho para repartir com os seus. É um ser inútil.

O pai de Gregor continua a passar o tempo em casa, dormindo sentado. Só que agora ele usa constantemente o uniforme de trabalho. A família decide então alugar um quarto para três inquilinos. Esse seria um paliativo para a falta de dinheiro. Gregor é deixado de lado, escondido, afastado. Até que um dia os inquilinos pedem para a sua irmã que toque violino na sala, para distraí-los. A música atrai o herói metamorfoseado e assusta o grupo ali reunido. Eles rompem o contrato e ameaçam processar a família. O pai de Gregor os expulsa da casa e enxota nosso herói como a um animal sarnento, ou como o inseto que agora ele é.

É nesse ponto que eu acredito ter se completado a transmutação. Gregor não é mais reconhecido como filho, irmão ou funcionário. Ele é apenas algo que a família Samsa deseja se livrar.

Ele morre um pouco depois desse incidente, deixando toda a família aliviada. Eles se mudam e recomeçam uma nova vida.

SOBRE A DEGRADAÇÃO

O personagem foi se degradando ao longo de todo o livro. Ele deixa de ser o mantenedor da família para se tornar o encosto, o motivo de vergonha e asco. A cena em que a maçã arremessada pelo seu pai fica presa às suas costas é um bom exemplo daquilo que ele se tornou. O indivíduo que, por algum motivo, não puder fazer parte dos ritos de produção formulados pelo sistema fabril será colocado à margem da sociedade.

O IMPACTO SOBRE O SER HUMANO

O impacto de tal existência sobre o ser humano é de completa destruição. A metáfora do livro é que qualquer coisa que nos impossibilite para esse tipo de vida social nos torna imprestáveis, semelhante a um inseto asqueroso.

O DESGASTE DAS RELAÇÕES FAMILIARES

As relações familiares expostas na obra demonstram um completo estado de parasitismo e corrupção de valores humanos. O membro familiar vale tanto quanto pode contribuir financeiramente. Há algo de muito perverso nesse tipo de pensamento.

FOI PRECISO TORNAR-ME ADULTO

Toda essa compreensão só veio numa segunda leitura, quando já era maior de idade e recaía sobre os meus ombros o peso das obrigações sociais e do trabalho. O jogo de interesses da família Samsa, apesar de expostos de forma caricatural, dão lastro para profunda reflexão sobre o tema. As similaridades com o filme “A Mosca” não vão muito longe, mas até hoje agradeço ao jornalista e professor Roque Luís Farias por ter feito a indicação.

Minha cosmovisão poderia não ter ido muito além do gosto por obras ficcionais voltadas apenas para o entretenimento, mas algumas influências fizeram toda a diferença.

José Fagner Alves Santos

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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