O anacronismo me cai bem

Ganhar a vida escrevendo é um ato anacrônico, de um ofício anacrônico. Mas essa é a figura que sempre desejei ser. Ainda uso relógio de bolso, costuro meus próprios cadernos, faço minha própria massa de macarrão, meu pão, uso caneta tinteiro, planto meu tempero verde. Sempre tentei justificar para mim mesmo que, “antigamente é que era bom”. A verdade, no entanto, é muito mais prosaica. Tudo isso faz parte do personagem social que passei a vida construindo. Sempre foi uma questão de “como é que os outros me enxergam?” ou melhor, “como eu quero que me enxerguem?”

Para quem desconhece minhas origens, fica parecendo que é só um caso de narcisismo intelectual. Da minha perspectiva, esse processo de alienação foi um mecanismo de defesa para o ambiente em que eu vivia. Durante a minha infância e adolescência, a modernidade quase sempre estava associada a vícios e vulgaridades. As músicas que a molecada da minha idade ouvia, quase sempre, traziam frases de duplo sentido ou eram extremamente explícitas. Boa parte da molecada do bairro estava associada ao tráfico de drogas e envolvida em atividades suspeitas. Minha mãe frequentava a Metodista Wesleyana em Volta Redonda no estado do Rio de Janeiro. Voltando para a minha cidade, ela se tornou frequentadora da Fonte da Água Viva. Recebi uma educação religiosa e é aí que está a origem do meu conservadorismo.

Nunca bebi, nunca fumei, nunca consumi nenhum tipo de droga ilícita. Os problemas de alcoolismo na família serviram de alerta, mas os preceitos religiosos me deram um direcionamento.

Afastei-me da Igreja muito jovem, tornei-me descrente, mas alguns valores continuam comigo até hoje. Não faço aqui apologia religiosa, nem mesmo tento advogar pelo conservadorismo – visto que não sou conservador há muito tempo –, este é apenas um exercício de compreensão sobre as complexidades das relações sociais que me moldaram. Nada é simples como parece.

Exibir uma persona diferente, que mostrasse às pessoas ao meu redor que eu não era semelhante à maioria dos moleques do bairro sempre foi a minha luta. Eu não frequentava festas, não ouvia as mesmas músicas, não assistia aos mesmos filmes, não participava das aglomerações na esquina. Passava meus dias estudando, na escola ou em casa. O mais próximo que estive de pertencer a um grupo foi durante o período em que colecionei histórias em quadrinhos. Em retrospectiva fica muito claro que eu era tolerado pelos nerds, mas nunca aceito integralmente.

Hoje eu consigo ver o quanto esse conservadorismo me prejudicou. A falta de relações sociais dificultou em muito a minha introdução no mercado de trabalho e em outras oportunidades. Por outro lado, o risco de que eu caminhasse para a marginalidade era muito grande. Tudo era mais fácil quando eu achava que as coisas eram pretas ou brancas. A percepção de que existem variações de cinza nos tira todas as certezas.

De qualquer modo, gosto da pessoa que me tornei. E este texto era só para externar esse sentimento. A escrita sempre me serviu com um processo psicanalítico. Tenho mais facilidade em escrever do que em falar. Esta é a forma que uso para compreender a mim mesmo. É extremamente anacrônica, mas ela me cai bem.

José Fagner Alves Santos

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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