Nem tudo que brilha é ouro

O cheiro de café que vinha da cozinha me tirava, aos poucos, daquele estágio entre o sono e o despertar. Havia algum tempo que eu estava escutando a conversa travada no primeiro cômodo do barraco. Mas aqueles diálogos se confundiam com meus sonhos. A fragrância do café recém coado, até hoje, me transporta para aquelas manhãs na casa da minha avó. O mesmo acontece com o cheiro de terra molhada após uma chuva leve antes de raiar o dia. Durante o período em que estagiei no Museu do Café, na cidade de Santos (25 anos depois), tinha a impressão que iria encontrar com dona Odília sempre que passava pela porta de entrada.

O fato é que, naquela manhã, estavam reunidos meu tio Neilton – aquele que me deu o carrinho de pedal -, minha avó Odília, minha tia Sayonara e Pedro Pereira, um amigo da família. Pereira tinha chegado cedo para falar sobre sua descoberta. Durante a farra da noite anterior alguém tinha confessado, entre um copo e outro, que conhecia a identidade do homem que agrediu a minha avó. Pedro havia checado com outras pessoas e, depois de ter certeza, correu para nos avisar. Ele havia passado a noite num desses botecos, fazendo uma forma um tanto primitiva de engenharia social. Primitiva, mas muito útil. Além da identidade do criminoso, Pedro descobriu também o nome do mandante. Era, como já havíamos intuído, o tal candidato a prefeito com quem minha avó havia travado uma discussão durante o comício.

Aqui se faz necessário um parêntese. Eu já expliquei a origem miscigenada da minha família. Por conta dessas diferentes matrizes étnicas meus parentes eram pessoas com diferentes tonalidades de pele. Entre os filhos da minha avó era possível encontrar desde um branco de olhos claros (meu tio Neilton), até uma mulata de cabelos cacheados (minha tia Sayonara). Sei que essa afirmação deve soar um tanto estranha ao amigo leitor, mas posso garantir que tal formação é comum entre as famílias pobres e miscigenadas do Nordeste.

O barraco era coberto de Eternit, tinha o telhado baixo e os cômodos muito pequenos. Já acordei suado naquele calor de quase verão. Pulei da cama e corri para junto dos adultos querendo entender melhor o que acontecia.

“Que nêgo safado. Eu sou preta mas me dou o respeito. Não é porque a pessoa é preta que tem que ser bandido”, vociferou minha tia quando ficou sabendo a identidade do agressor. A revolta se dava pelo fato da agressão ter partido de um vizinho próximo. Um homem negro que morava na rua de trás, desempregado, mas figurinha tarimbada nos botecos da região, era um bêbado contumaz. O fato dele ser negro era apenas um detalhe sem a menor relevância. Afinal, estávamos na Bahia, o estado com a maior população negra do Brasil, que é o país com a maior população negra fora da África.

Por que, então, ela havia focado neste detalhe? Uma mulata, filha de uma mameluca, na presença de um negro (Pedro Pereira era, como costumávamos chamar na região, negro retinto). Então, por que diabos ela havia se focado nisso?

A própria expressão pejorativa e caricata, usada pela minha tia, demonstrava que aquilo era algo aprendido. Ela soava muito semelhante ao personagem interpretado por Rubens de Falco na novela Escrava Isaura, produzida pela Rede Globo em 1976. Era uma linha “argumentativa” que vinha da época da escravidão, do tempo em que era normal se enxergar o negro como alguém inferior.

“Desde os tempos mais antigos, alguns homens escravizaram outros homens, que não eram vistos como seus semelhantes, mas sim como inimigos e inferiores. A maior fonte de escravos sempre foram as guerras, com os prisioneiros sendo postos a trabalhar ou sendo vendidos pelos vencedores. Mas um homem podia perder seus direitos de membro da sociedade por outros motivos, como a condenação por transgressão e crimes cometidos, impossibilidade de pagar dívidas, ou mesmo de sobreviver independentemente por falta de recursos. […] A escravidão existiu em muitas sociedades africanas bem antes de os europeus começarem a traficar escravos pelo oceano Atlântico”, escreveu Marina de Melo e Souza, em seu livro, África e Brasil africano.

A escravidão não foi criada pelos portugueses, mas eles souberam se aproveitar de tal “ferramenta”. Durante o período de colonização, quando era preciso muita mão de obra para trabalhar na produção da cana de açúcar e nos engenhos, muitos africanos foram trazidos à força para o Brasil. Não se sabe o número exato de pessoas, mas estipula-se algo entre três milhões e meio a quatro milhões de pessoas durante os três séculos de escravidão.

Desde essa época se instituiu a crendice de que o negro era alguém inferior, um simples animal, um subumano incivilizado que deveria servir ao homem branco.

O sociólogo Gilberto Freyre escreveu, em Casa-Grande & Senzala, seu livro mais conhecido, que seria impossível falar de africanos no Brasil sem falar da sua condição de cativo. O que ele busca demonstrar é que o negro sempre teve esse estigma de inferiorizado. Todos conhecemos a teoria, desenvolvida por Freyre, de que a escravidão no Brasil teria sido amena, mas é importante lembrar das passagens em que o autor denuncia o sadismo dos padres jesuítas e dos senhores de escravos.

Freyre também se referiu ao “inferno tropical” dos negros, quando relatou situações em que os senhores de engenho ordenavam que fossem queimadas vivas – em fornalhas – escravas grávidas, cujos fetos estouravam ao calor das chamas. Ou quando as sinhás enciumadas (gordas, amarelas e de dentes podres) quebravam os belos dentes das escravas mais bonitas ou quando mandavam-lhes cortar os seios, arrancar as unhas, queimar o rosto ou as orelhas. Freyre também relata momentos em que os considerados “inferiores” eram amarrados à boca de canhões e que, ao serem disparados, estraçalhavam seus corpos. Em suma, Freyre não oculta os corpos dos escravos que eram torturados, queimados, chicoteados, mutilados, partidos.

O sociólogo construiu uma narrativa da formação brasileira marcada por “um processo de equilíbrio de antagonismos”. Por isso essas duas realidades estão sempre presentes em seu trabalho. Mas a verdade é que aquela visão estigmatizada que foi propagada durante o período colonial marcou profundamente nossa sociedade. Eu gostaria de dizer que essa visão deturpada existe apenas nas classes mais abastadas, mas não é isso que a minha experiência mostra.

“Não vai adiantar nada ir até a polícia. Lá no hospital eles fizeram pouco caso”, comentou minha tia enquanto olhava para Pedro. Ele olhou para a minha avó e, num tom mais baixo e mais grave, disse pausadamente: “Eu conheço um pessoal aí. Se a comadre quiser a gente dá um jeito pra esse feladaputa não incomodar mais ninguém. ”

Dona Odília, com o braço ainda na tipoia, olhou para mim que tomava café num copo de alumínio com asa, balançou a cabeça de um lado para o outro, levou a mão à testa e disse: “Não, Pedro. Eu tenho família, tenho filhos, tem meu neto. Eu só quero que ele saiba que eu sei”.

“Você é quem sabe, Cigana, você é quem sabe. ”, retrucou Pedro.

Minha avó olhou para mim novamente e nossos olhos se encontraram. Ela abaixou a cabeça e tive a impressão de que ela estava envergonhada. É possível que sua atitude fosse outra se eu não estivesse presente.

Sobre o autor

Website | + posts

José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Últimas publicações