Jogo de campeonato, corro é pro mato

Sexta-feira, dia de decisão no Bairro da Barreirinha. Nossa esquadra é patrocinada peça por peça: a torrefação de café oferece duas camisas, a fábrica de tintas e a rede hipermercados mais duas. O vereador da região outras quatro. O restante das camisas, brancas ou desbotadas, fica por conta dos próprios atletas. Bem trajado ou não, nosso time está confiante. O jogo, marcado para as três da tarde, será duríssimo, considerada a rivalidade com o adversário. Mesmo jogando no campo deles, não nos amedrontamos. Pelo menos ninguém admitia o medo.

Zuza, o goleiro, foi encarregado, com o Barney Flintstone, de vistoriar o local e traçar um plano de retirada estratégica e rápida. A orientação era não provocar a torcida com comemorações excessivas após os gols nem fazer cera com a bola. O juiz designado para a partida foi o Luizão Magrinho, árbitro severíssimo, que numa partida expulsara até um cachorro invasor. Cada time teria de levar o seu troféu. Quem ganhasse ficaria com os dois. Como não tínhamos dinheiro, Batatinha resolveu pegar escondido um troféu que o pai ganhara num torneio de luta livre.

Depois de treinar a manhã inteira, rumamos a pé para o cenário do confronto. Não houve tempo para o almoço. Saímos às 12:38 (como bem recordo) e fomos comendo algumas amorinhas, peras e ameixas vermelhas. Quando chegamos, o bairro inteiro nos esperava com gritos de guerras e ameaças. Dois dos nossos, intimidados pela massa agitada, fizeram meia volta e nos desejaram boa sorte.

Zuza nos deu as últimas coordenadas sobre atalhos a pegar em caso de emergência. Passadas as cerimônias e trocas de gentilezas, entramos em campo. Olhamo-nos uns aos outros, nervosos e ressabiados. O juiz iniciou então a partida. A correria e o desespero do Batatinha eram maiores, pois estava em jogo o troféu do pai. A cada lance do time adversário, a galera ia à loucura.

O jogo começou marcado pelas violências e por ameaças. Recebi uma bola no meio de campo e rolei-a para a frente, na esperança de fugir do marcador. Inútil, levei uma sapatada por trás que me fez perder o rumo. O juiz não apitou e disse que era lance normal. Em seguida, o time deles entrou em nossa área e um jogador atirou-se ridiculamente no chão, procurando cavar um pênalti. Para a alegria da torcida e desespero do Batatinha o juiz apontou a marca do cal.

O centroavante deles preparava a bola enquanto fui falar com o Zuza – nosso goleiro. Disse que o centroavante o havia chamado de marca frangueiro. O sangue lhe subiu à cabeça e o respeitado guarda-metas resolveu mostrar quem era marica. O centroavante bateu no canto, mas Zuza, numa ponte perfeita, mandou a redonda para fora.

A partida seguiu com violência sem precedentes. Reclamei com o juiz e levei um cartão amarelo. Depois de muito sufoco, terminou o primeiro tempo. No intervalo, sentamo-nos debaixo de uma árvore para descansar um pouco. Todos sabíamos que seria impossível terminar a partida com uma vitória. Batatinha, aos prantos, pensava numa boa desculpa para o sumiço do troféu.

Com palavras consoladoras, fiz um breve discurso. – “O negócio é o seguinte, galera: estamos apanhando na frente do juiz e ele não faz nada. No final, vamos mesmo apanhar da torcida. Isso quer dizer estamos com o couro negociado. Alguém tem alguma sugestão?”

O silêncio foi a resposta. Continuei: “Já que vou apanhar, que seja com vitória. Quem quiser pode ir embora. Fico até o fim.”

Foi o ânimo que faltava ao time. Voltamos ao segundo tempo dispostos a suar a camisa e correr sem trégua, nem que fosse da torcida. Então, ocorreu o evento capital da partida. Bola pra frente e o Batatinha corre em disparada, ganhando o lance no meio de dois zagueiros. Ele faz o cruzamento e eu, de primeira, mando para o fundo das redes. Era o gol que tanto sonhamos nos dias anteriores. A torcida, revoltada, em alvoroço, berra e ameaça invadir o campo para reclamar de impedimento. O juiz resolveu então mostrar coragem e expulsou dois adversários reclamões. A confusão foi terrível. Só deu tempo de passar a mão nos troféus e escapulir pelo meio do mato, no caminho escolhido pelo Zuza.

Após uma corrida sem paradas, chegamos ilesos em casa. Batatinha erguia com orgulho as duas taças e sorria cheio de satisfação. Resolvemos, por unanimidade, não retornar tão cedo à Barreirinha para jogar. Eu, particularmente, nem voltei para visitar Luizão Magrinho. O juiz acabou pendurado no hospital do bairro, todo quebrado e engessado, por validar meu gol… impedido e de canela.

Sobre o autor

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Escritor, redator, podcaster, paulistano criado em Curitiba começou a cultivar o interesse pela escrita aos 14 anos. Escreveu uma coluna semanal para um jornal comunitário brasileiro nos EUA e se tornou editor de um periódico independente. De Pittsburgh realizou o Premio Podcast no Brasil em 2008/2009. Escreveu um livro sobre técnicas de filmagem com iPhone e iPad e o romance: “Tudo que tenho de fazer é sonhar“. Atualmente não consegue equilibrar o tempo gasto com Animação 3D, filmagens com smartphone, pilotar Drones e criar artes com Inteligência Artificial.


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