A escatologia no jogo político

A palavra escatologia representa tudo que chega em sua fase final, incluindo a história humana. De origem grega – que novidade! –, eschatos significa “último”, “fim”; e logos significa “palavra”, “discussão”, “instrução”, “ensino”, “assunto”, “tema”, “lógica”. Portanto, escatologia é o estudo do fim ou o estudo das últimas coisas, ou ainda o estudo dos últimos dias.

O cristianismo é, portanto, uma religião escatológica, que acredita numa sucessão de etapas que precisam acontecer – por isso ela é etapista – para que se chegue a um fim em que o bem vencerá o mal e os escolhidos viverão em paz para todo o sempre.

Religiões como o budismo e o hinduísmo têm uma concepção diferente da existência humana, nossa vida é encarada como um breve momento de um ciclo cósmico. A salvação, nesse caso, viria com a ruptura desse ciclo. Quando o indivíduo consegue sair desse processo de repetição infinita, ele atinge o estado de liberdade. As antigas religiões gregas e romanas – aquelas anteriores ao cristianismo – também seguiam um conjunto de crenças muito parecido.

Mas não é só o cristianismo que assume a linha escatológica. As religiões nórdicas, para ficar no exemplo mais difundido pela grande mídia, possuíam a crença no Ragnarok, uma espécie de apocalipse viking. Nesse processo, haveria uma batalha que culminaria na morte de vários deuses – incluindo Thor, Loki e seu pai, Odin. Haveria uma série de catástrofes naturais, o mundo seria tragado pelas águas e ressurgiria mais fértil. Os deuses renasceriam e se uniriam aos humanos sobreviventes para repovoar Midgard – o reino dos homens.

Essa ideia da escatologia está tão enraizada na nossa cultura que nem nos damos conta de sua origem religiosa. Por exemplo, no final dos contos infantis é comum a frase: “e viveram felizes para sempre”. Quase toda a produção ficcional do Ocidente se baseia na eterna luta do bem contra o mal. Romances, peças de teatro, cinema, desenhos animados, histórias em quadrinhos, novelas, séries e movimentos políticos. Sim, movimentos políticos. Todos eles possuem uma linha norteadora completamente ficcional. É sempre a história de nós contra eles, o bem contra o mal, o mocinho contra o bandido.

O Brasil, em sua origem, possui tradição católica, cristã, escatológica. Reconhecemos esse dualismo como algo inerente à realidade humana. É muito mais fácil para um cidadão médio entender as disputas entre os diferentes discursos ideológicos como parte da eterna dualidade entre bem e mal. “Nós”, os mocinhos, estamos combatendo “eles”, os vilões. Toda vez que o outro lado leva a melhor, fica a sensação de retrocesso. “Eles”, os vilões, estão atrasando as etapas necessárias para que a revolução se concretize.

Muitas vezes, dependendo de quem esteja no poder, perdemos realmente alguns avanços importantes. Mas isso ocorre porque a história é dinâmica, cheia de tensões e rupturas. A crença num processo linear, etapista, escatológico, teleológico, é parte de um ideário religioso que substituiu a vontade divina pela intervenção política. E a intervenção política se fortalece com a militância, que invariavelmente ganha contornos de evangelização fervorosa.

Tente convencer um religioso que bate à sua porta, buscando te evangelizar, que a religião dele está errada. Tente explicar que a religião correta é a sua. O que vai acontecer? Você vai convertê-lo? Ele vai aceitar seus argumentos? Agora, subvertamos o jogo. Quem garante que a sua crença é a correta? Quem garante que você não precisa ser evangelizado? Quem garante que tudo na teoria da oposição está errado, que nada ali pode ser aproveitado?

Estamos todos tão cheios de nós mesmos que nem nos damos conta de obviedades como essas. Todos corremos o risco de apresentar sintomas do efeito Dunning-Kruger, aquele fenômeno pelo qual indivíduos com pouco conhecimento sobre um assunto acreditam saber mais que outros com melhor nível de instrução. É assim que chegamos a resultados indesejados, decorrentes de decisões incorretas.

É preciso ter humildade. É preciso constante reflexão. As únicas certezas que temos na vida, parafraseando Benjamin Franklin, é a morte e os impostos.

 

José Fagner Alves Santos

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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