A complexidade autóctone

Cheguei à casa da minha bisavó, junto com minha mãe, por volta das 15 h. Estávamos em meados de dezembro de 1984, e o calor castigava. Vó Santa morava com sua filha caçula, Zilda, numa casa de fundo, alugada, no Bairro da Feirinha. Era preciso entrar por um portão de madeira e percorrer um longo beco até que chegássemos à edícula.

Logo da entrada já dava para sentir o cheiro de café torrado. Santinha, como os filhos a chamavam, costumava torrar e pilar o próprio café em casa. Tudo de forma muito artesanal.

“Miúdo! Tá sumida, sumida, sumida.”, gritou minha bisa quando nos viu. E correu para abraçar minha mãe. Maria Santa usava, como sempre, um lenço na cabeça, uma saia rodada e uma blusa florida. O bom humor era uma constante.

“Tá subido ou tá descido, Miúdo?”, perguntou fazendo sinal de legal e girando, logo em seguida, o polegar para baixo, tal qual o imperador romano no quadro de Jean León Gerome. Esse era o jeito que ela tinha para perguntar se estava tudo bem.

Minha mãe respondeu que estava tudo em paz, enquanto fazia sinal positivo com o dedão.

Maria Santa Souza, minha bisavó, era surda. Perdeu a audição ainda jovem, quando estava aprendendo a falar português. Não se sabe ao certo qual foi a causa. As lendas familiares são muitas.

A verdade é que ela não sabia o nome dos netos, por isso, apelidava a todos. Minha mãe era chamada de “Zói Miúdo” por causa dos olhinhos apertados. Santinha não sabia nem mesmo o nome da minha tia-avó, Zilda, a caçula de suas filhas. Entre as lendas familiares está aquela de que certo dia Santinha acordou esbaforida, contando:

“Eu sonhei que escutava, e que tu me contavas teu nome. Era Zilda.”

Não preciso dizer que esse foi um dos dias mais importantes na vida da minha tia-avó.

O nome, Maria Santa, foi dado na hora do casamento, pelo meu bisavô, José Alves Souza. Quando o padre perguntou o nome da noiva, ele teria dito, “bota aí que é Maria”. E o padre, meio sem jeito, perguntou, “Maria de quê?”. E ele respondeu sem pestanejar, “Maria Santa”.

Sei que a história tem um toque de realismo mágico, mas assim era o interior da Bahia na década de 1920. A mulher que viria a se tonar Maria Santa de Souza nasceu numa tribo Kumanaxú – tikmu’ún, em 1906, entre as cidades de Jequié e Itagi. Seu idioma era o maxakali, do tronco macro-jê. Ela era aquilo que se convencionou a chamar de tapuia, um termo genérico que servia para designar a todos os nativos que não pertenciam ao tronco linguístico tupi-guarani.

É provável que o amigo leitor nunca tenha ouvido falar da tribo Kumanaxú – tikmu’ún ou de seu idioma. Mas, só para dar ideia do que era a região a que hoje chamamos Brasil, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) estima que, em 1500 – quando os portugueses aqui chegaram –, havia entre um e 10 milhões de indígenas. Eram, aproximadamente, 1300 línguas. Generalizar, como sempre fizemos, é fugir da complexidade do problema.

Américo Vespúcio, relatando sua viagem às terras do Império Português nas Índias Ocidentais, em um trecho de carta dirigida a Lorenzo de Pietro Medici – o famoso governante de Florença – escreveu que:

Esta terra é povoada de gentes completamente nuas, tanto os homens quanto as mulheres. Trabalhei muito para estudar suas vidas, pois, durante 27 dias dormi e vivi em meio a eles. Não têm lei nem fé alguma, vivem de acordo com a natureza e não conhecem a imortalidade da alma. Não possuem nada que lhes seja próprio e tudo entre eles é comum; não têm fronteiras entre províncias e reinos, não têm reis e não obedecem a ninguém […] (1502).

Num cenário de, aproximadamente, 1300 idiomas e culturas diferentes, Vespúcio achou que 27 dias seria o suficiente para entender sociedades tão díspares da sua. Continuamos fazendo isso até hoje. Simplificamos tudo. Não acredito que seja por maldade, mas por um processo imitativo. Em seu livro “O Gene Egoísta”, de 1976, Richard Dawkins cria o termo ‘comportamento mimético’ para explicar a capacidade que algumas ideias têm de se auto replicar, de se espalhar no meio social, semelhante aos genes. Daí vem o termo “meme”. Segundo Dawkins, nós temos tendência a imitar o comportamento uns dos outros. Isso foi, até certo ponto, uma vantagem evolutiva. Alguns desses comportamentos imitados tendem a resistir ao tempo e se replicar por gerações.

Sempre escutamos ou lemos sobre os tupis e os guaranis – apesar de não sabermos quase nada. Mas nossa ignorância sobre os tapuias (todas as outras etnias) é muito maior. Durante muito tempo reinou a ideia de que os tapuias eram canibais e que, por isso, foram perseguidos com maior ferocidade. Mas esse é apenas um dos muitos mitos.

Quando entramos reparei num cacho de banana que estava em cima da mesa. Na época, banana era minha fruta preferida. Sentei numa poltrona de sofá que estava coberta com um forro de retalhos feito pela minha bisavó. Num altar que ficava num dos cantos da edícula, reparei algumas imagens católicas. Na parede estava pendurado um quadro com a imagem de Santa Luzia. Eu tinha uma tia-avó que se chamava Luzia. Seu nome era, obviamente, uma homenagem à santa siciliana. Contam que ela, minha tia-avó, teve um sério problema nos olhos. Meu bisavô fez promessa e, depois da graça alcançada, se tornou devoto. A devoção se estendeu para o restante da família. Na época não atentei para a estranheza do fato de que uma velha índia surda fosse devota de uma santa católica.

Hoje eu fico remoendo tudo isso. Como deve ter sido difícil para ela perder a audição e, mesmo assim, ter que tentar se comunicar num idioma que não era o seu. Ter que cultuar divindades (porque o catolicismo é politeísta, já dizia João Ubaldo Ribeiro) que não eram as suas.

Ela fez sinal para que eu pegasse uma das bananas. “Tá com fome?”, perguntou enquanto fazia um movimento com a cabeça em direção à mesa. Eu não esperei que ela perguntasse uma segunda vez. Foi naquele momento que comecei a me dar conta do que a minha mãe estava comentando com a minha tia Zilda. “Muito arriscado. Eu não posso deixa-lo aqui.” Notei que estavam falando de mim.

“E como você vai cuidar desse menino lá?”, perguntou minha tia.

“Tentarei arrumar uma creche para o horário em que eu estiver no trabalho.”, respondeu minha mãe.

Naquele momento fiquei sabendo que ela planejava me levar para Volta Redonda, no Estado do Rio de Janeiro. Eu não queria sair da minha cidade, mas não cabia a mim decidir. Minha mãe continuou conversando, justificando que levaria a todos os familiares se pudesse. Mas, naquele momento, aquilo era tudo que ela podia fazer.

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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