A capoeira que se faz em Santos

Aculturação e divergências dentro da capoeira praticada em Santos, o que para o mestre Ribas pode ser chamada de Capoeira Santista.
Às 8h da manhã tem início mais uma aula de capoeira no segundo andar de um prédio que fica na Avenida Floriano Peixoto, no Gonzaga. Nilton Ribas Martins Júnior, 44 anos, o mestre Ribas, como é conhecido, começa sempre tergiversando sobre o esporte.

Seus alunos comentam que às vezes ele usa todo o tempo das aulas apenas para falar sobre a história, a tradição e as disparidades da capoeira em cada região do País. Articulado ele fala de forma apaixonada sobre o assunto. Esse seu viés de orador não impede que o treino seja puxado.

Um dos assuntos recorrentes em suas aulas é o da valorização de fatores regionais na capoeira. Ele acredita que influências de outras modalidades de luta têm contribuído para enfraquecer e dissipar características tradicionais da arte.

A confederação Nacional de Capoeira reconhece três modalidades: a Capoeira de Angola, a Capoeira Regional e a Capoeira Contemporânea – que seria uma mistura das duas anteriores.

Mestre Ribas diz praticar e ensinar a capoeira Santista – para espanto e repúdio de muita gente.

Ribas começou a praticar capoeira em 1987. Era soldado do exército. Um colega, Eduardo da Silva, demonstrou alguns movimentos de capoeira e ele se interessou. Ribas conta que ficaram depois do expediente pintando a guia de uma alameda. Silva ficou reclamando por está atrasado, precisava correr para a aula. “Você é professor do quê?”, perguntou Ribas, “sou professor de Capoeira numa academia lá no Gonzaga”, respondeu Silva.

“Talvez ele tenha percebido que eu fiquei desacreditado (…) [Eduardo] largou o pincel, fez um movimento” relembra. Ribas recebeu então o convite do amigo para fazer uma visita ao treino. No local funcionava uma academia de karatê e no horário vago aconteciam as rodas de capoeira. Assistiu à aula e “me encantei”, confessa Ribas, que desde então não parou mais.

Mas, a capoeira seria santista, baiana, fluminense, recifense? A verdade é que não sabemos ao certo. Os estudiosos do assunto não podem afirmar com certeza se a capoeira teria surgido em Salvador, no Rio de Janeiro ou nos dois lugares ao mesmo tempo.

O pintor angolano Albano Neves afirmou, em 1960 quando visitava Vicente Joaquim Ferreira Pastinha – o Mestre Pastinha – que havia presenciado no Sul de Angola uma dança em que garotos cortejavam as moças por meio de uma dança muito parecida com a capoeira. Essa dança, chamada de n’golo tem o ritmo marcado por palmas e batuques e se usa pernadas e cabeçadas como forma de atingir o adversário.

Em depoimento para o documentário, Pastinha! Uma vida pela capoeira, o antropólogo Carlos Eugênio Soares afirma que a capoeira não é “africana nem brasileira, mas afro-brasileira”. Ou seja, a capoeira se desenvolveu no Brasil com base na cultura africana. Por conta disso, ela pode ter surgido em diferentes regiões do País com características próprias que foram ao longo do tempo sendo sistematizadas.

Convencionou-se considerar a Bahia como o berço da capoeira não só por causa da musicalidade (o uso da música na capoeira se consolidou, comprovadamente, na Região do Recôncavo Baiano), mas pelo fato de que dois dos seus maiores expoentes eram soteropolitanos:

Manuel dos Reis Machado, o mestre Bimba, desenvolveu em 1929 a Luta Regional Bahiana, ou como ficou conhecida mais tarde, a Capoeira Regional;

Vicente Joaquim Ferreira Pastinha, o mestre Pastinha, foi o grande divulgador da Capoeira de Angola, como ficou sendo conhecida a capoeira tradicional que não possuía características da nova modalidade.

Mestre Ribas explica que reconhece o valor dessas figuras para a difusão da capoeiragem, mas, para ele a dança acabou desenvolvendo características próprias em cada região de acordo com as necessidades culturais, étnicas, geográficas e econômicas. “Não que seja melhor ou pior, é só uma questão de identidade regional.”

“Na Bahia a capoeira se desenvolveu com a musicalidade como pano de fundo, no Rio de Janeiro não. Tinha o nome de capoeira, tinha os golpes, mas não tinha o vínculo musical”, explica ele, concluindo que “o que é chamado de capoeira hoje é o resultado do fluxo e refluxo de informação”.

Em sua dissertação de mestrado Capoeiras e valentões na história de São Paulo (1830-1930), Pedro Figueiredo Alves da Cunha chama a atenção para os registros da existência dessa manifestação cultural no Estado de São Paulo desde, pelo menos 1833, além das diferenças com o estilo praticado no Rio de Janeiro.

Cunha expõe, em boa parte das 341 páginas de sua monografia, as rivalidades e diferenças existentes nos estilos que variava mesmo entre a capoeira paulistana e a santista.

Ribas gosta de comparar os estilos aos sotaques da língua. Em um texto publicado na página de abertura do seu site (WWW.capoeirasantista.com.br) Ribas justifica que os diferentes estilos são semelhantes aos diferentes sotaques, específicos de cada região.

A dança, a música, a luta, a disciplina, as tradições, o conjunto daquilo que é a capoeira contribuiu, na opinião dele, para discipliná-lo e moldá-lo naquilo que ele é hoje. “O apelo corporal, a plasticidade” configura um fator marcante para quem experimenta assistir a uma apresentação de capoeira pela primeira vez. “A capoeira alcançou áreas na minha formação que meu pai, que é o meu herói, não alcançou”, reflete.

Sua maior influência até hoje é seu mestre, Fábio Parada.  E por conta disso costuma zombar dos “alunos do YouTube”. Segundo ele o site acaba servindo como ferramenta para que curiosos pratiquem a capoeira de forma caricatural.

Ribas é o tipo de pessoa que se ama ou se odeia por conta de suas idéias e posições. Suas ações e argumentos não parecem expressar xenofobismo, mas, um tacanho bairrismo que talvez sirva de suporte na busca da construção de uma identidade que se dispersa compulsivamente em tempos de globalização informatizada.

Post Scriptum: Essa reportagem foi publicado originalmente na primeira edição da Revista Juazeiro. Projeto laboratorial que serviu de Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo da Universidade Católica de Santos. Pode ser adquirida aqui.

Sobre o autor

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José Fagner Alves Santos é jornalista (MTB 0074945/SP), formado em Letras. Mestre em Educação, Doutor em Literatura. Fã de Ernest Hemingway, Tom Wolfe, Gay Talese, Hunter Thompson, John Hersey e Eliane Brum. Faz um arremedo de jornalismo literário. Publica sempre às segundas aqui no Editoria Livre e apresenta o podcast que é publicado às quartas. Colabora com o Portal Café Brasil.


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